20 março 2021
10 março 2018
NARRAÇÃO - TEORIAS E TEXTOS – CONSTRUÇÃO E ANÁLISE
- Meus agradecimentos ao site Mundo Vestibular
por este artigo que resume o meu momento didático da graduação, na matéria Prática
de Leitura e Escrita. Encontrado visando esclarecer a questão das análises textuais,
esclareceu além do esperado, por isso guardo-o aqui, no meu blog/arquivo.
Obrigada!
O
ato de escrever é prazer, diversão. É a sensação de poder, de domínio. Criar
gente, fabricar fantasias, inventar cidades, dar vida e dar morte, criar um
terremoto ou furacão, fazer o que eu quiser. Escrever é um jogo, brincadeira.
Conseguir segurar, prender uma pessoa, mantê-la atrelada a si (é o leitor
diante do livro: sua sensação divina).
(Ignácio
de Loyola Brandão)
Dominando
a palavra o homem tentou perpetuar seus mitos, sua visão mágica do mundo, suas
conquistas, sua história. Nas narrativas, nas lendas, nas epopeias e canções,
alegorizou seus ritos, temores e feitos, Seus registros venceram o tempo nos
traçados de múltiplos códigos, como a escrita cuneiforme, os hieróglifos e a
arte primitiva.
Assim, as
pinturas rupestres da caverna de Altamira, as escrituras sagradas dos Vedas, as
epopeias gregas, as cantigas provençais, os contos de fadas contam cada qual a
fantasia, a mitologia,a história de seu povo. No texto oral ou escrito, ouvir e
ler histórias é uma atividade antropológico-social que distingue culturalmente
o homem.
Desde que
descobriu o poder encantatório da palavra, o ser humano deu curso ao pensamento
mítico, deu permanência às crenças, às divindades, à criação do mundo, ao
cosmos, envolvendo-os em alegorias. Nos séculos XVI e XVII, na literatura oral
de raízes populares, predominam os contos folclóricos, os ditos e provérbios.
Na segunda
metade do século XVII, propaga-se a ação sistemática da Igreja para
cristianizar a cultura popular, mas o patrimônio imaginário dos contos,
sobretudo os de fadas, resiste à luta de forças da Contra Reforma que domina o
cenário religioso e escolar daquele século.
Com a
evolução da História, a interpretação dos acontecimentos foi-se distanciando
das alegorias, da imaginação; entre o mito e as formas derivadas da narrativa
(o romance, a novela, o conto, a crônica), os heróis divinos torna-se
personagens humanas.
Os fator
históricos de épocas primordiais cedem lugar aos episódios cotidianos
contemporâneo. Hoje, afirma Nelly Novaes Coellho (O conto de fadas), “uma das
características mais significativas do nosso século é a coexistência, pacífica
ou não, entre inteligência racional/cientificista, altamente desenvolvida, e o
pensamento mágico que dinamiza o imaginário”.
Nas
narrativas orais, nas fábulas, nos contos de fadas ou nos romances contemporâneos,
é a imaginação que faz com que apreciemos os encantamentos de Branca de Neve
como apreciamos o fascínio de Cem anos de solidão.
Foi
pensando no imaginário, na magia e na fantasia que foram selecionados os textos
narrativos desta coletânea. Histórias que, sem deixar à margem o padrão culto
da língua, encantam pela simplicidade, pelo humor, pela sátira, pela inovação,
pela singularidade, enfim pelo aproveitamento exemplar das virtualidades da
língua.
Definição
Narrar é
contar uma história (real ou fictícia). O fato narrado apresenta uma sequência
de ações envolvendo personagens no tempo e no espaço.
São
exemplos de narrativas a novela, o romance, o conto, ou uma crônica; uma
notícia de jornal, uma piada, um poema, uma letra de música, uma história em
quadrinhos, desde que apresentam uma sucessão de acontecimentos, de fatos.
Situações
narrativas podem aparecer até mesmo numa única frase. Exemplos: O menino caiu.
“Minha sogra ficou avó.” (Oswald de Andrade). Repare que a última frase resume
ações que envolvem o casamento, a maternidade e a transformação da sogra em
avó.
Estrutura da narração
Convencionalmente,
o enredo da narração pode ser assim estruturados: exposição (apresentação das
personagens e/ou do cenário e/ou da época), desenvolvimento (desenrolar dos
fatos apresentando complicação e clímax) e desfecho (arremate da trama).
Entretanto,
há diferentes possibilidades de se compor uma trama, seja iniciá-la pelo
desfecho, construí-la apenas através de diálogos, ou mesmo fugir ao nexo lógico
de episódios.
Escritores
(romancistas, contistas, novelistas) não compões um texto estritamente
narrativo. O que eles produzem é um tecido literário em que aparecem, além da
narração, segmentos descritivos e dissertativos.
As
narrativas mais longas podem explorar mais detalhadamente as noções de tempo –
cronológico (marcado pelas horas, por datas) ou psicológico (marcado pelo fluxo
do inconsciente) – e de espaço (cenário, paisagem, ambiente).
O
envolvimento de várias personagens e os múltiplos núcleos de conflito em torno
de uma situação também são comuns nas narrativas extensas.
Portanto,
oferecer ao aluno um painel de narrações literárias (romances, novelas, contos)
como modelo é distanciar-se da finalidade prática da redação escolar, mas
alguns textos são exemplares para ilustrar procedimentos narrativos.
Elementos básicos da
narração
São
elementos básicos da narração: enredo (ação), personagem, tempo e espaço.
Quando a
história é curta, como na narração escolar, são imprescindíveis: enredo e
personagens. A perspectiva de quem escreve é dada pelo foco narrativo (de 1 ou
3 pessoa). Os discursos (direto, indireto e indireto livre) representam a fala
da personagem.
No texto a
seguir, “Um homem de consciência”, foram apontados os elementos básicos, a
estrutura narrativa – exposição, desenvolvimento e desfecho -, os vários
discursos e o foco narrativo. A onisciência do narrador revela-se no
conhecimento íntimo que tem da personagem, desenvolvendo-lhe os pensamentos e
apreensões.
Um homem de consciência – Monteiro Lobato
1.
parágrafo
Chamava-se
João Teodoro, só. O mais pacato e modesto dos homens. Honestíssimo e
lealíssimo, com um defeito apenas: não dar o mínimo valor a si próprio. Para
João Teodoro, a coisa de menos importância no mundo era João Teodoro. [Até aqui
é exposição.]
2.
parágrafo
Nunca fora
nada na vida, nem admira a hipótese de vir a ser alguma coisa. E por muito
tempo não quis nem sequer o que todos ali queriam: mudar-se para terra melhor.
3.
parágrafo
Mas João
acompanhava com aperto de coração o deperecimento visível de sua itaoca.
[Nesses dois parágrafos, discurso do narrador.]
4.
parágrafo
- Isto já
foi muito melhor, dizia consigo. Já teve três médicos bem bons
– agora só
um bem ruinzote. Já teve seis advogados e hoje mal há serviço para um rábula
ordinário como o Tenório. Nem circo de cavalinhos bate mais por aqui. A gente
que presta se muda. Fica o restolho. Decididamente, a minha Itaoca está se
acabando... [Monólogo interior.]
5.
parágrafo
João
Teodoro entrou a incubar a ideia de também mudar-se, mas para isso necessitava
dum fato qualquer que o convencesse de maneira absoluta de que Itaoca não tinha
mesmo conserto ou arranjo possível. [Discurso do narrador.]
6.
parágrafo
- É isso,
deliberou lá por dentro. Quando eu verificar que tudo está perdido, que Itaoca
não vale mais nada de nada de nada, então arrumo a trouxe e boto-me fora daqui.
[Monólogo interior.]
7.
parágrafo
Um dia
aconteceu a grande novidade: a nomeação de João Teodoro para delegado. Nosso
homem recebeu a notícia como se fosse uma porretada no crânio. Delegado, ele!
Ele que na era nada, nunca fora nada, não queria ser nada, não se julgava capaz
de nada...
8.
parágrafo
Ser
delegado numa cidadezinha daquelas é coisa seriíssima.
Não há
cargo mais importante. É o homem que prende os outros, que solta, que manda dar
sovas, que vai à capital falar com o governo. Uma coisa colossal ser delegado –
e estava ele, João Teodoro, de-le-ga-do de Itaoca!... [Discurso do narrador.]
9.
parágrafo
João
Teodoro caiu em meditação profunda. Passou a noite em claro, pensando e
arrumando as malas. Pela madrugada botou-as num burro, montou seu cavalo magro
e partiu.[Clímax da história.]
10.
parágrafo
- Que é
isso, João? Para onde se atira tão cedo, assim de armas e bagagens?
11.
parágrafo
- Vou-me
embora, respondeu o retirante. Verifiquei que Itaoca chegou mesmo ao fim.
12.
parágrafo
- Mas,
como? Agora que você está delegado?
13.
parágrafo
-
Justamente por isso. Terra em que João Teodoro chega a delegado, eu não moro.
Adeus. [Discurso direto.]
14.
parágrafo
E sumiu.
[Desfecho.]
• Exposição: 1. parágrafo
• Desenvolvimento: do 2. ao 13.
parágrafo
• Desfecho: 14. parágrafo
• Complicação: 7. e 8. parágrafos.
• Clímax: 9. parágrafo
A tessitura narrativa
A
narrativa deve tentar elucidar os acontecimentos, respondendo às seguintes
perguntas essenciais:
• O QUÊ? – o(s) fato(s) que
determina(m) a história;
• QUEM ? _ a personagem ou personagens;
• COMO? _ o enredo, o modo como se
tecem os fatos;
• ONDE? _ o lugar ou lugares da
ocorrência;
• QUANDO? _ o momento ou momentos em
que se passam os fatos;
• POR QUÊ?? _ a causa do acontecimento.
Observe
como se aplicam no texto de Manuel Bandeira esses elementos:
Tragédia brasileira - Manuel Bandeira
Misael,
funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade.
Conheceu
Maria Elvira na Lapa – prostituída, com sífilis,
Demite nos
dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição de miséria.
Misael
tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico,
dentista, manicura...Dava tudo quanto
Ela
queria.
Quando
Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado.
Misael não
queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez nada disso:
mudou de casa.
Viveram
três anos assim.
Toda vez
que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.
Os amantes
moravam no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bom
Sucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp,
outra vez no Estácio, Todos os santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato,
Inválidos...
Por fim na
Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligência,
matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal,
vestida de organdi azul.
• O quê? Romance conturbado, que
resulta em crime passional.
• Quem? Misael e Maria Elvira.
• Como? O envolvimento inconsequente de
um homem de 63 anos com uma prostituta.
• Onde? Lapa, Estácio, Rocha,Catete e
vários outros lugares.
• Quando? Duração do relacionamento:
três anos.
• Por quê? Promiscuidade de Maria
Elvira.
Quanto à
estrutura narrativa convencional, acompanhe a sequência de ações que compõem o
enredo:
• Exposição: a união de Misael, 63
anos, funcionário público, a Maria Elvira, prostituta;
• Composição: a infidelidade de Maria
Elvira obriga Misael a buscar nova moradia para o casal;\
• Clímax: as sucessivas mudanças de
residência, provocadas pelo comportamento desregrado de Maria Elvira, acarretam
o descontrole emocional de Misael;
• Desfecho: a polícia encontra Maria
Elvira assassinada com seis tiros.
Personagem
Personagem
é uma palavra feminina que deriva do grego persona (máscara). Modernamente, já
se convencionou o emprego da palavra nos dois gêneros, tanto para se referir a
seres humanos, seres animados ou antes personificados.
Literariamente,
pode-se definir a personagem como a pessoa ou ser personificado ou animado que
figura na história e nela se envolve ativa ou passivamente. Criada no espectro
infinito da imaginação, a personagem assume o perfil físico e psicológico único
que só a individualidade de cada autor permite.
Dessa
forma, uma personagem revela-se através de dados e aspectos definidos pelo
autor, que a dota de características éticas, sociais, ideológicos, políticas,
profissionais, etárias e até fantásticas.
Sendo assim, uma personagem pode ser definida psicologicamente:
A mulher
do coronel era o tipo de mãe de família. Tinha quarenta anos e ainda na fronte,
embora secas, as rosas da mocidade. Era uma mistura de austeridade e meiguice,
de extrema bondade e de extrema rigidez. Gostava muito de conversar e rir, e
tinha a particularidade de amar a discussão, exceto em dois pontos que para ele
estavam acima das controvérsias humanas: a religião e o marido. A sua melhor
esperança, afirmava, seria morrer nos braços de ambos. (Machado de Assis)
ou fisicamente:
Magro,
meão na altura, dum moreno doentio abria admiravelmente os olhos molhados de
tristeza e calmos como um bálsamo. Barba dura sem trato. Os lábios emoldurados
no crespo dos cabelos moviam como se rezassem. O ombro direito mais baixo que o
outro parecia suportar forte peso e quem lhe visse as costas das mãos notara
duas cicatrizes como feitas por bala. Fraque escuro, bastante velho. Chapéu
gasto, de um negro oscilante. (Mário de Andrade)
Em alguns
casos, o narrador não revela as características psicológicas da personagem, mas
procura traduzi-las através de suas ações e comportamento.
Observe no seguinte texto como o autor
apresenta sua personagem:
Está
sempre a rir, sempre a cantar. Canta o dia inteiro, num tom arrastado,
apregoando as revistas que vende. Por aqui, por ali, vai, vem, corre, galopa,
atravessa as ruas com uma rapidez de raio, persegue os veículos, desliza entre
os automóveis como sombra. Parece invulnerável. (Graciliano Ramos)
Portanto,
aparência, a gestualidade, o comportamento e as ações concorrem para esboçar
personagens complexas (personalidade contraditória) e lineares (comportamento
previsível). Essa classificação (complexas e lineares) abrange os tipos e
caricaturas, as principais e secundárias, os protagonistas e antagonistas.
Personagem linear
A
personagem linear define-se pela permanência e previsibilidade de sua conduta;
seu caráter e suas atitudes mantêm-se inalteráveis ao longo da narrativa. Os
heróis das narrativas folhetinescas (romances populares) costumam ser
corajosos, sedutores, românticos.
Apresentam
caráter nobre, gestos solidários, redentores e justiceiros. Até os traços
físicos correspondem à luminosidade de sua conduta: olhos ternos, beleza
diáfana, viril. Sua ação heroica será tanto um ato de bravura física quanto um
exercício habilidoso da razão ou a prática da nobreza de espírito. Já o vilão,
em sua linearidade, apresenta em geral aparência repugnante: nariz adunco,
olhar injetado, lábios finos, expressão glacial.
O aspecto
fisionômico do vilão confere com a vilania de seu comportamento: a hostilidade,
as paixões vis, a velhacaria, o cinismo, a mentira, o oportunismo e outros
aspectos negativos definem e seu mau-caráter. O Coringa, personagem do time
Batmam, e Juliana, a serviçal de O Primo Basílio, de Eça de Queirós, tipificam
o vilão que tem na hediondez o ponto de intersecção entre o físico e o psicológico.
Assim, a
personagem linear encerra um tipo facilmente identificável que permeia as
produções da indústria cultural: histórias em quadrinhos (Mônica, Cascão),
telenovelas, romances do gênero romântico, personagens de programas de humor
etc.
Personagem complexa
A
personagem complexa, por sua vez, é imprevisível em suas atitudes, pois seu
comportamento é contraditório, oscilando entre ações edificantes e degeneradas,
redentoras e infamantes, benevolentes e hostis, amorosas e odiosas, como o
seres humanos. Assim, o caráter de personagem complexa mostra variações de
humor e atitudes em suas ações e em sua interioridade psicológica.
Mesmo
surgida nos romances do século XIX, contemporaneamente a personagem complexa
atravessa algumas produções da indústria cultural é o caso, por exemplo, de
Charlie Brown, ora ingênuo, ora altivo; e Charles Chaplin representando
Carlitos – debochado em Tempos Modernos, sentimental e altruísta em Luzes da
Ribalta, pernóstico em O Grande Ditador ou humilde e resignado em O Garoto.
Tipo e Caricatura
Real ou
fictícia, apresentando um conjunto de traços físicos e psicológicos que a
definem em sua individualidade, a personagem pode também ser um tipo ou uma
caricatura.
O tipo é
uma figura singular, de características marcantes que, por suas peculiaridades
comportamentais, universaliza-se e eterniza-se. É o caso, Por exemplo, de D.
Quixote, Romeu e Julieta e Conselheiro Acácio (O Primo Basílio). Há ainda tipos
reconhecidamente populares: o bêbado, a fofoqueira, o malandro, o mascate, a
beata, o chato e outros.
Era a
comadre uma mulher baixa, excessivamente gorda, bonachona, ingênua ou tola até
um certo ponto, e finória até outro; vivia do ofício de parteira, que adotada
por curiosidade, e benzia de quebranto; todos a conheciam por muito beata e
pela mais desabrida papa-missas da cidade. Era a folhinha mais exata de todas
as festas que aqui se faziam(...) (Manuel Antônio de Almeida)
Quanto à
caricatura, sua única qualidade ou tendência é dilatada ao extremo, provocando
uma distorção propositada, a serviço da sátira ou do cômico.
O Dr. Lustosa
Era um
homem baixo, de ombros estritos a caídos. Uma gordura mal distribuída
acumulava-se notadamente nos quadris, na região sacrococcigiana, no ventre e
nas bochechas. Quanto ao resto, dava a impressão dum tipo magro e frágil. Os
braços, coxas e pernas eram finos; as mãos, miúdas e delicadas, como mãos de
menino. Tinha a pele macilenta e pintalgada de cravos principalmente na testa,
no nariz reluzente e no queixo, onde a barba azulava, mais cerrada.
A cabeça
parecia ter sido modelada com material de confeitaria, procurasse vingar-se
dessa circunstância dando à sua obra traços de caricatura. No indicador da mão
direita o desembargador trazia sempre o anel simbólico, com um grande rubi
engastado. No inverno, quando fazia muito frio, usava-o por cima da luva.
Sempre que queria dar relevo a um trecho da conversação, riscava o ar com dedo
do anel, sublinhado assim as palavras com um traço vermelho e chispante. (Érico
Veríssimo)
Personagens não-humanas
Segundo
Massaud Moisés, “a própria etimologia do vocábulo personagem assinala um
restrição semântica que merece registro: animais não podem ser personagens,
menos ainda os seres inanimados de qualquer espécie. Quando comparecem no
universo ficcional, os animais tendem a ser meras projeções (como no caso de
Quincas Borba), ou denotam qualidades superiores à sua condição, uma espécie de
“inteligência humana (como a Baleia, de Vidas Secas), ou servem de motivo para
a ação (como em Moby Dick).
Os
apólogos ou fábulas utilizam os animais como protagonistas, mas envolvem-nos de
um simbólico que os subtrai do círculo zoológico inferior para alça-la ao
perímetro urbano.” Como ilustração, lembramos a cachorra baleia:
Baleia
queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lembraria as mãos
de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com
ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás
gordos, enormes.”
(Graciliano
Ramos)
Quando o
protagonista é um ser inanimado (num apólogo) ou um animal (numa fábula), temos
um antropomorfização. O protagonista se reveste de traços humanos, sobretudo
quanto à inteligência e ao caráter: é a agulha altiva em “Um Apólogo”, de
Machado de Assis, é a raposa ardilosa na fábula “A raposa e as uvas”, de Esopo.
A
antropomorfização é obtida através do uso da prosopopeia. (Ver figuras de
pensamento). Esse recurso expressivo, utilizado com mais frequência nos textos
descritivos, é expediente comum nos apólogos e nas fábulas. A prosopopeia
consiste na atribuição de características humans a seres não-humanos
(personificação) ou de características animais a seres inanimados (animização).
No
universo literário, podemos encontrar também personagens coletivas,
figurativizadas ou não (é o caso de Vasco da Gama, em Os Lusíadas,
metaforizando o heroísmo e o espírito de conquista do povo português). Já no
romance O Cortiço, o próprio cortiço e o sobrado que moradias, personificam o
antagonismo de classes.
Principais e Secundárias
As
personagens, quanto à sua atuação no enredo, podem ser classificadas como
principais ou secundárias. A personagem principal é aquela que produz os fatos,
trama os acontecimentos, ou é o móvel da maioria das ações. São as personagens
secundárias que dão suporte à história, tecendo pequenas ações em torno das
personagens principais.
Protagonistas e
antagonistas
Outra
classificação possível, que geralmente atinge as personagens principais, é a
oposição entre protagonista e antagonista. O primeiro deseja algo que ao
segundo cabe impedir, dificultar, cobiçar, destruir, desejar etc. O antagonista
nem sempre é uma pessoa; pode ser um objeto, um animal, uma situação
financeira, cultural, social (pobreza, instrução, trabalho), um problema físico
ou ainda uma peculiaridade psicológica, que dificulta o acesso àquilo que o
protagonista deseja.
Enredo
O enredo
ou trama corresponde à maneira como a história se desenrola, aos “arranjos”
narrativos que cercam as personagens, e às situações que as envolvem. Essa
articulação pode revelar o núcleo temático da matéria narrada, seja ela real ou
ficcional; assim, falamos em enredo cujas temáticas podem ser conflitos passionais,
casos de mistério ou terror, dramas sociais, experiências existenciais, ficção
científica etc. Esse enovelamento de ações a que chamamos enredo abrange as
etapas já explicadas na estrutura narrativa: exposição, desenvolvimento
(complicação – ponto de tensão – e clímax – ponto de maior tensão) e desfecho.
O texto
narrativo resulta, portanto, de duas articulações: a história (sequência de
fatos) e o enredo (organização dos fatos). Dessa forma, o enredo é a maneira
como o narrador organiza os dados que a história oferece.
Observe
como na contextualização de Domingo no Parque, de Gilberto Gil, os arranjos
formais – versificação, rima, estrofe e refrão – e a organização dos fatos,
articulando personagens, tempo, espaço e ação, proporcionam dimensão e expressividade
a um episódio que seria, como notícia de jornal, apenas corriqueiro.
Domingo no Parque
(Gilberto Gil)
Exposição: identificação das personagens
O rei da
brincadeira – ê José
O rei da
confusão – ê João
Um
trabalhava na feira – ê José
Outro na
construção – ê João
Desenvolvimento: encadeamento de ações
A semana
passada, no fim da semana,
João
resolveu não brigar.
No domingo
de tarde saiu apressado
E não foi
pra ribeira jogar
Capoeira
pra lá, pra ribeira,
Foi
namorar.
O José
como sempre, no fim da semana
Guardou a
barraca e sumiu.
Foi fazer,
no domingo, um passeio no parque,
Lá perto
da boca do rio.
Foi no
parque que ele avistou
Juliana,
Foi que
ele viu
Juliana na
roda com João,
Uma rosa e
um sorvete na mão.
Juliana,
seu sonho, uma ilusão,
Juliana e
o amigo João.
Complicação:
ponto de tensão
O espinho
da rosa feriu Zé
E o
sorvete gelou seu coração.
O sorvete
e a rosa – ê José
A rosa e o
sorvete – ê José
Oi
dançando no peito – ê José
Do José
brincalhão – ê José
O sorvete
e a rosa – ê José
A rosa e o
sorvete – ê José
Oi girando
na mente – ê José
Do José
brincalhão – ê José
Juliana
girando – oi girando
Oi a roda
gigante – oi girando
Oi na roda
gigante – oi girando
O amigo
João – oi João
O sorvete
é morango – é vermelho
Oi girando
e a rosa – é vermelha
Oi
girando, girando – é vermelha
Clímax:
ponto de maior tensão
Oi
girando, girando – olha a faca
Olha o
sangue na mão – ê José
Juliana no
chão – ê José
Outro
caído – ê José
Seu amigo
João – ê José
Desfecho
Amanhã não
tem feira – ê José
Não tem
mais construção – ê João
Não tem
mais brincadeira – ê José
Não tem
confusão – ê João.
Segundo
Fred de Góes (Literatura Comentada), “existe texto se caracteriza por sua
construção cinematográfica em que, após situar as personagens e descrever o
cenário onde a ação se desenrolará, o compositor possa a narrar os fatos,
empregando a técnica de montagem em pequenos flashes. Além de letra e melodia,
o compositor junta ruídos, palavras e gritos sincronizados às cenas
descritivas, evocando realisticamente um parque de diversões”.
Para que o
enredo tenha unidade, os fatos devem estar inter-relacionados, de tal modo que
uns sejam a consequência ou efeito dos outros.
Assim como
são muitas as possibilidades de se desenvolver uma narrativa, muitas são as
teorias literárias para analisá-las, sobretudo nos romances. Estudiosos como
Wolfgang Kayser, Vitor de Aguiar e Silva, Temístocles Linhares, Gerard Genette
e Gerg Luckás são alguns dos nomes que elaboram teorias sobre a narrativa
romanesca.
Também a
Semiótica estuda as estruturas narrativas, segundo as ideias de J. Greimas,
Roland Barthes e outros. Semiótica é a ciência da significação, cujo objeto de
estudo são os códigos verbais e não-verbais, como os gestos, a música, a
pintura, o cinema etc, e as produções discursivas que lhes correspondem. O
interesse da Semiótica compreende a análise da linguagem e da ideologia nos
mais diversos discursos.
Dessa
forma, o enredo, numa interpretação semiótica, constrói-se num percurso
temporal onde se destacam invariantes que determinam a fórmula canônica da
narração: um sujeito (personagem) num de disjunção, isto é, apartado de seu
objeto-valor (uma paixão, um bem material, um desejo), tentando chegar a um
estado de conjunção, obtendo o objeto-valor pretendido.
As
variantes narrativas ficam por conta de uma sucessão de funções que enredam o
sujeito na trajetória em busca de seu objeto-valor, numa evolução marcada pelas
lógicas temporal e causal: a primeira resulta de uma cronologia, é a sucessão
de ações no tempo; a segunda é uma relação de causa e consequência – uma ação
antecedente provoca uma consequente.
Assim, o
enredo, interpretado semioticamente, surge de um recurso narrativo no qual se
entretecem elementos mínimos invariantes (um sujeito e seu objeto-valor). Além
dessas variantes, que nos dão a fórmula convencional da narrativa, ressaltamos
outros elementos:
• manipulação: uma personagem
manipulada outra para induzi-la a um fazer (projeto do fazer), envolvendo um
querer;
• competência: um saber ou um poder
permite executar o projeto do fazer;
• performance: a personagem executa o
projeto do fazer;
• sanção: conforme a ação executada, o
sujeito do fazer é punido ou recompensado.
Uma
análise subordinada às interpretações semióticas consta do apêndice, ilustrando
o percurso narrativo do texto machadiano “Conto de Escola”.
Tempo
Há duas
maneiras de lidar com o tempo em uma narração: cronologicamente ou
psicologicamente.
Tempo cronológico
O tempo
cronológico é o tempo em que se desenrola a ação. Indica-se, conforme o caso,
dia, mês, ano, hora, minuto, segundo, década, século etc. Não é preciso
menciona-los sempre, mas deve-se dar a entender ao leitor o tempo de duração da
história, utilizando-se de expressões como: alguns minutos, instantes, no dia
seguinte, algum tempo depois, passaram-se meses, anos ou dias, etc.
O ano era
de 1840. Naquele dia – uma segunda-feira do mês de maio – deixei-me estar
alguns instantes na Rua da Princesa. (Machado de Assis)
O escritor
monta o tempo narrativo distribuindo-o de tal forma que seja aceito pelo
leitor:
No dia
seguinte, estava Rubião ansioso por ter o pé de si o recente amigo da estrada
de ferro, e determinou ir a Santa Teresa, à tarde; mais foi o próprio Palha que
o procurou logo de manhã...(Machado de Assis)
Seja em
saltos abruptos (milênios, séculos, décadas), ou em períodos curtos (no mesmo
dia, em uma semana), mantém-se a sucessão temporal. Um recurso possível para
alterar a linha temporal é antecipar um fato futuro (Quando pequeno gostava de
lidar com animais sem imaginar que um dia seria veterinário) ou regredir, em
flashback, para um passado a ser relatado (Lembrou-se de quando a conheceu. Há
trinta anos, numa manhã chuvosa, viu-a num ponto de ônibus e resolveu...).
Tempo psicológico
O tempo
psicológico, que não é material nem mensurável, flui na mente das personagens.
Nesse caso, transmite-se a sensação experimentada durante o tempo em que o fato
ocorreu: a personagem pode ter passado por situações que pareceram extremamente
longas, mas que, na realidade, duraram apenas alguns minutos.
O tempo
psicológico é produto de uma experiência interior, não mensurável mecanicamente,
mas subjetivamente. Traduz-se com palavras a duração de um
acontecimento,através da intensidade emocional que o acompanha.
O suplício
durou bastante, mas, por muito prolongado que tenha sido; não igualava a
mortificação da fase preparatória: o olho duro a magnetizar-me, os gestos
ameaçadores, a voz rouca a mastigar uma interrogação incompreensível
(Graciliano Ramos).
Partículas temporais
As
partículas denotadoras de tempo mais importantes são as conjunções e locuções
conjuntivas, que exprimem:
• tempo anterior: antes que;
• tempo posterior: depois que, assim
que;
• tempo imediatamente posterior: logo
que, mal, apenas;
• tempo simultâneo ou concomitante:
quando, enquanto;
• tempo inicial (tempo a partir do qual
se inicia a ação): desde que, desde quando;
• tempo em que termina a ação iniciada
no passado e prolongada até o momento em que se fala: agora que, hoje que, a
última vez que;
• ações reiteradas ou habituais: cada
vez que; toda vez que, sempre que.
A algumas
dessas locuções conjuntivas agregam-se com frequência partículas ou advérbios
de valor intensivo: pouco antes que, muito antes que, imediatamente depois que,
etc.
O pronome
relativo entra em vários conglomerados de sentido temporal: depois do que,
durante o tempo em que, até o dia (hora, momento) em que, no instante em que,
etc.
Vocabulário da área
semântica de tempo
• Simultaneidade: durante, enquanto, ao
mesmo tempo, simultaneamente, coincidentemente, ao passo que, à medida que...
• Antecipação: antes, primeiro,
antecipadamente, véspera...
• Posteridade: depois, posteriormente,
a seguir, em seguida, sucessivamente, por fim, mais tarde...
• Intervalo: meio tempo, ínterim...
• Tempo presente: atualmente, agora, já
neste instante, o dia de hoje, modernamente...
• Tempo futuro: amanhã, futuramente, em
breve, dentro em pouco, proximamente, iminente, prestes ..
• Tempo passado: tempos idos, outros
tempos, outrora, antigamente...
• Frequência: constantemente,
habitualmente, costumeiramente, usualmente, corriqueiramente, repetidamente,
tradicionalmente, amiúda, com frequência, muitas vezes...
• Infrequência: raras vezes, raramente,
raro, poucas vezes, nem sempre, ocasionalmente, esporadicamente, de quando em
quando, de vez em quando, de tempos em tempos...
A sucessão
temporal para o encadeamento das ações, conferindo um caráter dinâmico à
narração.
Espaço
Sejam as
seguintes expressões: num certo lugar, distante daquele local, numa casa (rua
ou país), temos determinados do espaço e, para caracteriza-lo, são empregados
recursos descritivos que recuperam a percepção objetiva (dos cinco sentidos) e
as impressões subjetivas (psicológicas).
Se a
cobertura descritiva desvela integralmente o objeto, pessoa, cena ou paisagem,
temos a fidelidade fotográfica que permite ao leitor “visualizar” o espaço
descritivo. Quando a descrição apenas sugere traços (objetivos e subjetivos)
dos elementos, o leitor é instigado a completar a imagem com a criatividade e a
fecundidade de sua imaginação.
Cenário funcional e
decorativo
O cenário
no qual as personagens se movimentam e integram pode ser decorativo ou
funcional. Quando decorativo, o espaço é lugar de referência, apenas situando
onde acontece o fato, fazendo sobressair quem dele participa.
As pausas
descritivas podem precisar ou reter o curso narrativo, promovendo o
afrouxamento da narrativa ou irrompendo a força imaginativa do leitor.
Enquanto o
cenário funcionar detalha para a ação, o decorativo detalha para a inércia
contemplativa. Se o aparato descritivo for subtraído de um texto, pode
reduzi-lo a um relato sem fecundidade, sem virtuosismo.
Na
estética do Romantismo, a especialidade é explorada em detalhes, correspondendo
ao gosto da época em que floresceu sua literatura. Quando o cenário é a
natureza, o descritivismo reflete os estados interiores do “eu”. A descrição
romântica é, sobretudo, um recurso decorativo.
Já o
espaço funcional é determinante da história, antecipando a ação ou enquadrando
o lugar em que se desenrolará um episódio um episódio. No Realismo, o cenário
físico age as personagens, conforme os ideários que orientavam as produções
literárias da época. Assim, textos de Machado de Assis, Euclides da Cunha,
Aluísio Azevedo ou Eça de Queiroz inserem seus personagens num espaço
fundamental.
No
Realismo, o meio (definido descritivamente) interfere no comportamento
psicológico e social das personagens, confirmado a teoria determinista de que o
homem é produto do meio.
A
descrição, quando funcional, como no Realismo, é sempre uma relação decifradora
de traços e acontecimentos entre o homem e o mundo exterior.
Na
descrição realista, o empenho documental recria a realidade. Nenhum detalhe é
desprovido de interesse, ganhando destaque através das impressões sensoriais.
Assim,
pode-se aprender o mundo com olhos realistas ou com pulsações românticas,
caracterizando lugares, personagens, o espaço e a ação.
Compare agora as descrições de ambiente
romântico e realista, respectivamente:
Havia à
Rua do Hospício, próximo ao campo, uma casa que desapareceu com as últimas
reconstruções.
Tinha três
janelas de peitoril na frente; duas pertenciam à sala de visitas; a outra a um
gabinete contíguo.
O aspecto
da casa revelava, bem como seu interior, a pobreza da habitação.
A mobília
da sala consistia em sofá, seis cadeiras e dois consolos de jacarandá, que já
não conservavam o menor vestígio de verniz. O papel da parede de branco passara
a amarela e percebia-se que em alguns pontos já havia sofrido hábeis remendos.
O gabinete
oferecia a mesma aparência. O papel que fora primitivamente azul tomara a cor
de folha seca.
Havia no
aposento uma cômoda de cedro que também servia de toucador, um armário de
vinhático, uma mesa de escrever, e finalmente a marquesa, de ferro, com o lavatório,
e vestida de mosquiteiro verde.
Tudo isto,
se tinha o mesmo ar de velhice dos móveis da sala, era como aqueles
cuidadosamente limpo e espanejado, respirando o mais escrupuloso asseio. Não se
via uma teia de aranha na parede, nem sinal de poeira nos trastes. O soalho
mostrava aqui e ali fendas na madeira; mas uma nódoa sequer não manchava as
tábuas areadas.” (José de Alencar)
Era a sala
geral do estudo, à beira do pátio central, uma peça incomensurável, muito mais
extensa do que larga. De uma das extremidades, quem não tivesse extraordinária
vista custaria a reconhecer outra pessoa na extremidade exposta. A um lado,
encarreiravam-se quatro ordens de carteiras de pau envernizado e os bancos. À
parede, em frente, perfilavam-se grandes armários de portas numeradas,
correspondentes a compartimentos fundos; depósito de livros. Livros é o que
menos se guardava em muitos compartimentos. O dono pregava um cadeado à
portinha e formava um interior à vontade.
Uns, os
futuros sportmen, criavam ratinhos cuidadosamente desdentados a tesoura, que se
atrelavam a pequenos carros de papelão; outros, os políticos futuros, criavam
camaleões e lagartixas, declarando-se-lhes precoce a propensão pelo viver de
rastos e pela cambiante das peles; outros, entomologistas, enchiam de casulos
dormentes a estante e vinham espiar a eflorescência das borboletas; os
colecionadores, Ladislaus Netos um dia, fingiam museus minerológicos, museus
botânicos, onde abundavam as delicadas rendas secas de filamentos das folhas
descarnadas; outros davam-se à zoologia e tinham caveiras de passarinhos, ovos
vazados, cobras em canhaça. Um destes últimos sofreu uma decepção. Guardava
preciosamente o crânio de não sei que fenomenal quadrúpede encontrado em
escravações de uma horta, quando verificou-se que era uma carcaça de galinha!
(Raul Pompéia)
Espaço físico e social
Pode-se
também descriminar os espaços físico e social. No físico os domínios da
natureza. Lembramos na literatura romântica os espaços nostálgicos,
sacralizados ou devoradores: a primavera eterna, as torrentes avassaladoras, os
penhascos sombrios, as matas virgens, os sertões ermos. No social, estão os
limites culturais, como nos romances urbanos: as sociedades dos salões, dos
saraus, dos teatros, além de cortiços, vendas, feiras, ambientes espúrios,
enfim a pobreza citadina.
Observe no fragmento romântico abaixo, o
arrebatamento descritivo de um espaço físico – um cenário da natureza:
Enquanto
uma canoa deslizava misteriosamente, levando Ceci e Peri, o castelo senhorial
de D. Antônio de Maria esturgia nos ares, destruído pelo paiol de pólvora
incendiado. Da nobre e opulenta mansão restava apenas um noturno e uma
tristíssima lembrança. Sobreviviam somente Cecília, o índio e D. Diego. A água
do rio subiu espantosa e repentinamente. Os dois, Ceci e Peri, acolheram-se ao
topo de uma palmeira. E a inundação aumenta numa catástrofe assustadora. O
índio arranca a palmeira da terra.
E a
palmeira, arrastada pela corrente impetuosa do Paraíba, seguia o destino das
águas. Seguia rapidamente...até sumir-se no horizonte.
(José de
Alencar)
Atente para a descrição de um espaço social em
um canto atual:
O prédio,
de ordinário, é velho, imundo, e em suas paredes sobram suores, tensões,
histórias. À entrada ficam tipos magros que vagabundeiam, esbranquiçadas ou encardidos,
mexendo a prosa macia que verifica pernas que passam, discute jogo e conta
casos, com as falas coloridas de uma gíria própria, tão dissimulada quando a
dos bicheiros, dos camelôs ou dos turistas.
A entrada
é de um bar comum, comum. Como os outros. Mas este é um fecha-nunca, olho aceso
dia e noite, noite e dia. Mantém pipoqueiro, engraxataria, banca de jornais. E
movimento. Adiante é que estão o balcão das bebidas, o salão do barbeiro, a
manicure, talvez até a prateleira de frutas. Depois, as cortinas verdes, em
todo o rigor do estilo, ou, mais simplesmente, a porta de vaivém. E, a um
passo, se cai na boca do inferno, chamada salão, campo, casa, bigorna, gramado.
O nome
mais usual e descolorido é salão de bilhar. É lá que se ouve, logo à entradinha,
uma fala macia enfeitada de um gesto de mão, um chamamento e uma ginga de
corpo, como uma suave, matreira e desbochada declaração de guerra:
_ Olá, meu
parceirinho! Está a jogo ou a passeio?
(João
Antônio)
Foco narrativo
Contar
(ato de narrar) ou como contar ( o estilo pessoal) implica uma determinada
posição do narrador com relação ao acontecimento. Assim, o narrador pode
assumir três pontos de vista na narrativa:
Narrador participante
O narrador
participante é uma das personagens, principal ou secundária,. De sua história.
Ele está “dentro” e “vê” os acontecimentos de dentro para fora. Nesse caso, a
narrativa, elaborada em 1 pessoa (eu – nós), tende a ser autobiográfica,
memorialista ou confessional.
Lembre-se:
não se confunde autor com narrador. O autor tem existência real, é uma pessoa
que existe fisicamente. O narrador é uma personagem criada pelo autor para
contar a história.
Coloquei-me
acima de minha classe, creio que me elevei
bastante.
Como lhes disse, fui guia de cego, vendedor de doces
e trabalhador
de aluguel. Estou convencido de quem nenhum
desses
ofícios me daria os recursos intelectuais necessários para
engenhar
esta narrativa. (Graciliano Ramos)
Narrador observador
O narrador
observador simplesmente relata os fatos, registrando as ações e as falas das
personagens; ele conta como mero espectador, uma história vivida por terceiros.
É a narrativa escrita em 3 pessoa (ele, ela, eles, elas).
Os campos,
segundo o costume, acabava de descer do almoço e, a pena atrás da orelha, p
lenço por dentro do colarinho, dispunha-se a prosseguir o trabalho interrompido
poucos antes. Entrou no escritório e foi sentar-se à secretária>”
(Aluísio
Azevedo)
Narrador onisciente
O narrador
onisciente ou onipresente é uma espécie de testemunha invisível de tudo quanto
ocorre, em todos os lugares e em todos os momentos; ele não só se preocupa em
dizer o que as personagens fazem ou falam, mas também traduz o que pensam e
sentem. Portanto, ele tenta passar para o leitor as emoções, os pensamentos e
os sentimentos das personagens.
Um segundo
depois, muito suave ainda, o pensamento ficou levemente mais intenso, quase
tentador: não dê, elas são suas.
Laura
espantou-se um pouco: por que as coisas nunca eram dela?”
(Clarice
Lispector)
Discurso narrativo
Na
comparação de um texto narrativo, o narrador pode reproduzir a fala da
personagem, empregando as seguintes possibilidades direto, discurso indireto,
discurso indireto livre.
No
discurso direto, o narrador reproduz na íntegra a fala das personagens ou
interlocutores. Geralmente, essa fala é introduzida por travessão.
- Mete a
mão no bolso. Não te falta nada? – perguntou Honório.
- Falta-me
a carteira. Sabes se alguém a achou? – indagou Gustavo
- Achei-a
eu – respondeu Honório. (Machado de Assis)
Discurso direto
No
discurso direto, indica-se o interlocutor e caracteriza-se=lhe a fala por meio
de verbos dicendi: dizer, exclamar, suspirar, explicar, perguntar, responder,
replicar, etc;
Nem sempre
o autor indica de quem são as falas, já que elas se esclarecem dentro do
contexto. O exemplo ilustra essa possibilidade:
O
Paranoico só fala no telefone tapando o bocal com um lenço. Para disfarçar a
voz.
- Podem
estar gravando.
- Mas você
ligou para saber a hora certa!
- Nunca se
sabe. (Luís Fernando Veríssimo)
O diálogo
acelera a narrativa, levando o leitor a entrar em contato direto com as
personagens. O narrador apenas dá indicações sobre quem fala. Além de imprimir
mais dinamicidade e realismo à narração, o diálogo presentifica a história. Os
traços linguística do discurso revelam a identidade cultural e social da
personagem e, ao mesmo tempo, oferecem elementos para sua caracterização
psicológica.
Segundo
Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova gramática do português contemporâneo), “no
plano expressivo, a força da narração em discurso direto provém essencialmente
de sua capacidade de atualizar o episódio, fazendo emergir da situação a
personagem, tornando-a para o ouvinte, à maneira de uma cena teatral, em que o
narrador desempenha a mera função de indicador das falas.
Estas, na
reprodução direta, ganham na naturalidade e vivacidade, enriquecidos por
elementos linguísticos tais como exclamações, interrogações, interjeições,
vocativos e imperativos, que costumam impregnar de emotividade a expressão
oral”.
Observe o efeito dos diálogos na pequena
narração abaixo:
Namorados
O rapaz
chegou-se para junto da moça e disse:
- Antônia,
ainda não me acostumei com seu corpo, com a sua cara.
A moça
olhou e esperou.
- Você não
sabe quando a gente é criança e de repente vê
uma
lagarta listada?
A moça se
lembrava:
- A gente
fica olhando...
A meninice
brincou de novo nos olhos dela.
O rapaz
prosseguiu com muita doçura:
- Antônia,
você parece uma lagarta listada.
A moça arregalou
os olhos, fez exclamações.
O rapaz
concluiu:
- Antônia,
você é engraçada! Você parece louca. (Manuel Bandeira)
Ao
utilizar o discurso direto – diálogos (com ou sem travessão) entre as
personagens -, pode-se, quando à pontuação, optar por um dos três estilos
abaixo:
Estilo 1
- Que tal
o carro? – perguntou João.
-
Horroroso! – respondeu Antônio.
Estilo 2
João
perguntou: “Que tal o carro?”
Antônio
respondeu: “Horroroso!”
Estilo 3
- Estou
vendo que você adorou o carro, disse infusivamente João
- Você está
redondamente enganado, retrucou Antônio.
Observação:
O estilo 3 só deve ser utilizado em caso de oração afirmativa.
Discurso indireto
No
discurso indireto, o narrador exprime indiretamente a fala da personagem. O
narrador funciona como testemunha auditiva e passa para o leitor o que ouviu da
personagem. Nessa transcrição, o verbo aparece na 3 pessoa, sendo
imprescindível a p0resença de verbos dicendi (dizer, responder, retrucar,
replicar, perguntar, pedir, exclamar, contestar, concordar, ordenar, gritar,
indicar, declarar, afirmar, mandar etc), seguidos dos conectivos que (dicendi
afirmativo) ou se (dicendi interrogativo) para introduzirem a fala da
personagem na voz do narrador.
Observe nos exemplos abaixo os discursos
indiretos:
“Ele
começou, então, a contar que tivera um sonho estranho”.
“Todos se
calaram para ouvi-lo e ele, muito sério, perguntou qual era o assunto.
Informado, prosseguiu dizendo que estava profundamente interessado em
colaborar”.
“João
perguntou se ele estava interessado nas aulas”.
Na
narração, para reconstruir a fala da personagem, utiliza-se a estrutura de um
discurso direto ou de um discurso indireto. O domínio dessas estruturas é
importante tanto para se empregar corretamente os tipos de discurso na redação
escolar, como para exercitar a transformação desses discursos exigida em alguns
exames vestibulares.
Na
passagem do discurso direto para o indireto, cabem as seguintes observações
quanto à construção da frase:
Discurso direto
• Presente
A
enfermeira afirmou:
-É uma
menina
• Futuro
do presente
Pedindo
gritou:
- Não
sairei do carro.
•
Pretérito perfeito
- Já
esperei demais, retrucou com indignação.
•Imperativo
Olhou-a e
disse secamente:
- Deixe-me
em paz.
• Primeira
ou segunda pessoa
Maria
disse:
- Não
quero sair com Roberto
• Demonstrativo
este ou esse
Retirou o
livro da estante e acrescentou:
- Este é o
melhor
• Vocativo
- Você
quer café, João? Perguntou a prima
• Forma
interrogativa ou imperativa
Abriu o
estojo, contou os lápis e depois perguntou ansiosa:
- E o
amarelo?
Discurso
indireto
•
Pretérito imperfeito
A
enfermeira afirmou que era uma menina.
Fonte:
https://www.mundovestibular.com.br/articles/4202/1/NARRACAO---TEORIAS-E-TEXTOS/Paacutegina1.html
• Repassado conforme original. - Contém
erros gramaticais – segundo comentários no site fonte, revisão efetuada
conforme os conhecimentos da editora.
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